"Abordagem Cultural" - Válida ou perigosa?
Muitas vezes, crescemos ouvindo as seguintes expressões: Que uma coisa é de Deus, outra coisa não é, ou ainda, que determinada música é "cristã", outra, não é. Que algo é de Deus e outro algo, é do "mundo". Mas você já chegou a refletir sobre o que significam de fato estas palavras?
Em minha vida, sempre cresci ouvindo essa dicotomia em minha casa, e vivendo com pais que exemplificavam esta práxis em direções diametralmente opostas. Minha mãe, assembleiana, amava o conjunto de louvor da Assembléia de Deus em PE, no qual fazia parte. Somente ouvia hinos em seu equipamento de som, sua estação de rádio era a "Rádio Tamandaré"(Cujo Slogan era: "Rádio Tamandaré - 100% Jesus" 😂😂) ou a "Rádio Maranata", ambas evangélicas; nunca usou uma calça desde sua conversão, nunca usou brincos ou adereços, fiel à doutrina assembleiana dominante em minha cidade e no estado. Um verdadeiro exemplo. Meu pai, contudo, embora assembleiano também, já me mostrava uma maneira de pensar muito mais crítica e desafiadora, por assim dizer. Ouvia músicas cristãs, e cantores como Feliciano Amaral, Oséias de Paula e Jair Pires, grandes expoentes masculinos da música cristã da época, porém, também ouvia Altemar Dutra, Nelson Rodrigues, Zé Ramalho, Luiz Gonzaga, Flávio José, Alcymar Monteiro e outras figuras do forró nordestino e da MPB. Minha mãe veladamente, não aprovava, mas ele dizia sempre em casa: "Fernanda, isso é cultura! Qual o problema?"
A pergunta em minha cabeça sempre era: Qual é a diferença entre eles?
Posteriormente, desenvolvendo a leitura, comecei a ver também a mesma expressão. Minha mãe, mais simples, preferia orar e cantar do que ler. Ela lia a bíblia, mas nunca a ouvi falar ou demonstrar aprofundar-se em textos. Meu pai, contudo, não me lembro de ter memórias enquanto criança de vê-lo orando, e ele sempre cantou horrivelmente (não gostava de cantar), mas lembro várias e várias vezes de vê-lo lendo. Lia, fazia estudos, marcava textos, e suas bíblias (sim, ele tinha mais de uma), eram repletas de pedaços de papel com esboços, rascunhos e rabiscos, que para mim eram intrigantes. Ele sabia detalhes dos povos, aspectos culturais, instrumentos musicais usados, e lia vários livros de temas variados. Livros espíritas, literatura dos Testemunhas de Jeová, Adventistas, até mesmo livros sobre a Cultura védica, já o vi ler. "Conheça o mundo no qual você vive, pra poder falar com ele de forma que ele possa entender o que você tem a dizer" - ele me dizia. Meu pai, nunca pegou no meu pé sobre coisas "espirituais" no sentido "pentecostal" da palavra. Me presenteava com livros de Literatura, obras de Ivan Ângelo, Joaquim Manuel de Macedo, Pardal Mallet, Dante, Sienckiewicz entre outros. Enquanto os meninos da igreja comentavam sobre o cantor que cantaria na festividade dos jovens, eu já sabia inglês, filosofia e estava lendo os escritos de Platão. Com 13 anos, abandonei a classe dos 'juniores' da EBD de minha igreja e pedi pra ser colocado na sala dos adultos. Os irmãos, à princípio, acharam engraçado, mas após um tempo disseram que ali não era meu lugar. Eu questionava os professores com indagações que eles não sabiam responder. Como a aula não avançava, não me permitiram mais estar ali. Meu pai, ficou orgulhoso e disse que era assim mesmo, eles que não sabiam do que falavam. Me incentivou a prosseguir lendo a palavra e crescendo no conhecimento dela.
Voltei para a sala dos adolescentes. Mas a pergunta continuava lá: Qual a diferença?
Hoje, com 32 anos, e após ter lido mais de 500 livros, posso afirmar que a diferença é simples: Conhecimento. Conhecimento é o que nos faz entender o mundo no qual vivemos. Conhecimento é o que nos faz entender a cultura na qual estamos inseridos. Conhecimento é o que nos faz entender a bíblia, e a história do povo de Deus. Conhecimento é o que nos faz entender a nós mesmos e comunicarmos a verdade do evangelho em um mundo cada vez mais pluralizado e fragmentado.
Essa distinção está presente até hoje, e é interessante vermos que ela foi combatida com veemência por muitos homens piedosos durante a história. Lutero, Calvino, Spurgeon e outros, combatiam essa distinção entre "sagrado" e "profano". Porém atualmente, no cenário eclesiástico brasileiro, principalmente no âmbito pentecostal, essa distinção ainda é muito presente. Mas a pergunta faz sentido: Será que o isolamento do aspecto "pecaminoso" desse mundo, é a mesma coisa que o distanciamento do aspecto "cultural" desse mundo? Por que sermos "santos" pressupõe sermos ignorantes e desinteressados em elementos que nos constituem como sociedade, raça e povo? Por que ter "unção" significa não se entreter com nenhum filme que não seja cristão, não ouvir nenhuma música que não seja cristã, não fazer nada que não seja "cristão" ? Será que isso não contribui para sermos percebidos como "excêntricos" (não no melhor sentido da palavra), e sermos excluídos do convívio social por aqueles que precisamos alcançar? Ou será, que nos habituamos de tal forma ao conforto de nossos bancos eclesiásticos e o reconhecimento titularístico/formal por parte de nossos iguais, que não suportamos mais o cheiro e o fato de sermos somente "comuns"?
Aqui traço uma ponderação ainda mais firme: Será que alguns pastores, líderes, cristãos, não se acostumaram a ser apenas isso e esqueceram de como é ser "gente"?
Vale lembrar que, o farisaísmo dos tempos de Jesus, tinha como principal característica um legalismo e uma religiosidade hipócrita e exagerada - sim, concordo - contudo, havia um elemento identitário explícito que levava os fariseus a não se verem como pessoas comuns, traço esse não distante do que vemos por aí em muitos líderes cristãos modernos.
Minha opinião é de que precisamos resgatar o contato saudável com o elemento cultural como ponte para a comunicação da cosmovisão cristã a este mundo. Isto não se trata de uma recomendação em aspecto opcional e sugestivo, mas sim, em caráter necessário e emergencial. Nossa santidade não se dá pelo não-conhecimento dos elementos componentes da cultura contemporânea, mas sim de nossa não-promoção dos valores propagados pelos mesmos. Que possamos crescer em conhecimento, graça e sabedoria, pois, assim como cantou um determinado pregador, que possamos buscar ter "a graça da garça. A arte de viver em meio à lama, sem sujar as vestes." Essa sim precisa ser uma realidade presente em nossos dias.
Texto criado por: Victor Soares